Um Assassino em Asriad
A neblina cobria o mar como um manto
cinzento cobre uma cama. O sol brilhava no céu, acabado de nascer, refletindo a
sua luz nas águas pacíficas e aquecendo o pequeno navio que deslizava
suavemente no oceano. Joriah tentou ver para lá da neblina, mas apenas uma
grande mancha cinzento-escura era visível. O seu cabelo loiro dançava com o
vento que soprava forte naquela manhã. O capitão do barco subiu as escadas da
sua cabina principal e resmungou qualquer coisa quando viu que Joriah se tinha
levantado primeiro do que ele.
Meia hora depois tinham atracado no
porto de Asriad. O dia começava na cidade com os pescadores a chegar a terra e
a despejar o pescado em contentores e caixas que depois seriam levados para o
mercado. As peixeiras começavam a apregoar, as crianças corriam de um lado para
o outro com os pés descalços sobre a pedra fria do porto, as criadas dos
grandes senhores e senhoras da cidade traziam o seu pequeno cesto e compravam
alimentos para o resto do dia.
Joriah saboreou tudo aquilo enquanto
esperava. Tinham-lhe dito que uma carta com as ordens a cumprir lhe seria
entregue de manhã no porto e, por isso, agora só lhe restava esperar. Quando a
fome despertou dentro de si, foi comprar duas sardinhas e um pão e comeu sossegado.
Enquanto comia, uma criada passou por ele com o seu cesto e na borda havia uma
carta. A criada deu uma pequena pancada e a carta caiu no colo de Joriah.
O jovem mondarghi abriu a carta.
Nela lia-se apenas duas frases: “Lorde
Garfield. Independentemente do que acontecer, ele tem de desaparecer”. Era
o quanto precisava de saber, aquele era o seu alvo.
Saiu do porto, apreciando a pequena
e cómoda cidade. Asriad localizava-se numa colina à beira-mar onde desaguava o
rio Jarsmar que serpenteava colina abaixo. As casas tinham sido construídas ao
longo da colina, tão perto uma das outras que pareciam caixas amontoadas.
Pequenas pontes de pedra e madeira ligavam ruas superiores, pontes essas que
tanto serviam de ligação como de habitação. Do outro lado da colina era o
bairro rico da cidade, onde as casas eram mais afastadas, onde havia parques e
onde o rio era limpo e translúcido, com as grandes mansões e jardins coloridos.
Enquanto caminhava pelas ruas
apinhadas de gente, Joriah foi apanhando pedaços de conversas aqui e ali e
rapidamente descobriu que Lorde Garfield era o governador da cidade. E também
descobriu que ia dar uma festa para celebrar o seu trigésimo terceiro Ciclo. O
número três dá sorte, segundo se diz, e ainda mais sorte é celebrar o trigésimo
terceiro Ciclo com Esthia, Elaria e Eria cheias.
Chegou ao topo da colina. Dali podia
ver o bairro rico de Asriad. Era uma parte mais calma da cidade, onde havia
menos gente na rua, onde as crianças favorecidas brincavam nos parques
acompanhadas das suas amas, os senhores e senhoras passeavam calmamente e
conversavam, discutindo com que Lorde a filha se ia casar ou que rendimentos
tinham tido no passado Ciclo. Havia uma particular azáfama em torno da maior
casa da cidade. Era ali que, provavelmente, o Lorde Garfield vivia. Criadas e
amas entravam e saiam da residência, apressadas para fazer qualquer coisa.
Desceu a encosta. Antes de realizar
o ato tinha de estudar o alvo, saber as suas rotinas, onde ia de manhã e de
tarde, quando saía de casa e, mais importante, quando se tornava num alvo
fácil. Os portões da casa eram guardados por quatro guardas e as portas
principais da casa por mais dois. Quando espreitou por uma grande janela da
mansão descobriu que o Lorde Garfield era seguido por mais um guarda que provou
um bolo antes do Lorde o poder provar. Por
que anda ele tão protegido? Então percebeu porquê. Aquela não seria
certamente a primeira tentativa de assassínio. Ande protegido ou não, ninguém escorrega pelos dedos de um mondarg,
muito menos pelos meus dedos, pensou Joriah.
Após dar o estudo dos hábitos de
Lorde Garfield por inúteis, Joriah dedicou o resto da tarde a procurar quem o
tinha contratado. Todo o trabalho tinha sido feito em segredo. Nunca chegara a
saber quem queria o Lorde Garfield morto, nem sequer sabia uma letra do seu
nome. Não sabia se era um Lorde ou uma Senhora, se era rico ou pobre. No
entanto iniciou a sua pesquisa por tentar descobrir a criada que lhe tinha dado
a carta.
Voltou ao mercado, agora na sua hora
de ponta. As pessoas passavam atarefadas de um lado para o outro e em todo o
lado toda a gente falava do trigésimo terceiro Ciclo do Lorde Garfield.
Dizia-se que todos os Lordes e todas as Senhoras da Península de Darigmar iam à
festa, que iam servir dezenas de pratos, que haveria teatros e músicos e que o
melhor vinho de Gorganar tinha sido trazido. Não viu a cara da criada em lado
algum e quando se preparava para partir, ouviu outra conversa entre duas
peixeiras.
— Ouvi dizer que o Lorde Garfield
quase morreu na semana passada — disse uma.
— Então, o que aconteceu? —
Perguntou a outra, casualmente, como se aquilo fossem notícias ultrapassadas.
— Parece que uma criada lhe
envenenou o vinho. A sorte dele foi que o guarda provou primeiro e ele
sobreviveu. A criada não foi encontrada, nem um rasto dela.
— Com essa tentativa já lá vão…
trinta e três? — E ambas começaram a rir histericamente.
O
que fez ele para o odiarem tanto?, questionou-se Joriah. Enquanto
regressava ao bairro rico, passou por um templo onde um aglomerado de pessoas
se tinha juntado. Abriu caminho pelo meio delas e entrou no grande templo
iluminado por janelas coloridas que representavam os vários deuses ali
adorados, os deuses da Nova Fé. No centro do templo e no centro de um círculo
com doze estrelas de doze pontas, estava uma mesa de pedra onde um morto estava
deitado. Doze velas tinham sido acesas em volta do corpo. Um Sacerdote no altar
discursava acerca da boa vontade dos deuses e sobre como eles iam levar o bom
Lorde Ariahad para o Reino Eterno. Uma mulher vestida de vermelho chorava junto
ao corpo, acompanhada por uma criada. A criada, também ela vestida de vermelho,
olhou para Joriah e este percebeu que era a mesma que lhe tinha dado a carta
naquela manhã.
Olhou de novo para o corpo deitado
na mesa de pedra e de novo para a criada que agora consolava a recente viúva. Tinha
sido o Lorde Ariahad que o tinha contratado para matar Lorde Garfield. E agora
ele estava morto. A criada voltou a olhar para ele e lembrou-se do que a carta
dizia. “Independentemente do que
acontecer, ele tem de desaparecer”. O ato tinha de ser realizado, Lorde
Garfield tinha de morrer.
Desviou o olhar dos olhos frios e
penetrantes da criada e desapareceu no meio da turba, deixando o Sacerdote a
cantar uma prece qualquer à Deusa da Memória para que o Lorde Garfield não
fosse esquecido.
O sol começava a desaparecer no
horizonte e ainda não tinha um plano para fazer Lorde Garfield desaparecer. Não
podia simplesmente entrar na sua mansão e matá-lo. Teria de se infiltrar.
Também não podia mentir e dizer que era um Lorde qualquer porque uma festa de
tal magnitude teria os seus convidados bem escolhidos e controlados. Entar por
uma janela não seria fácil, com todos aqueles guardas a guardar os portões
frontais e com aquele muro alto.
Decidiu voltar para junto da mansão,
para a estudar melhor. Quando lá chegou já as três luas brilhavam no céu, com
Esthia a lançar um brilho suave e prateado como as donzelas. Elaria brilhava
dourada como a coroa que a Rainha usava e como o ouro que os Lordes e Senhoras
usam para comprar os seus interesses. Eria, por sua vez, brilhava com uma luz
cinzento-escura banal, como o resto do povo.
Os primeiros nobres começavam a
chegar. Bandaernos vindos do sul, noriathi do norte. Lordes e Senhoras vindos
de todos os cantos de Erithios para celebrarem tão especial acontecimento. Viu
Lorde Almuar’Enoh, um noriathi de Dagwell, a cidade mais a norte de Erithios.
Aos quatro guardas que previamente guardavam os portões frontais,
juntaram-se-lhes dois mordomos, um com uma lista com todos os convidados e
outro que recebia os nobres do reino.
Joriah estudou o muro que rodeava a
propriedade e decidiu que era demasiado alto para tentar subir. Se não vou por cima, pensou, vou por baixo. A propriedade ficava
isolada das outras, rodeada por um pequeno bosque de pinheiros. Foi até ao lado
Este do muro e quando decidiu que era seguro, transformou-se. Tal como era habitual
com os mondarghi, a Dádiva tinha-lhe concedido o poder de tomar a forma de um
animal. Para sua sorte, era uma pantera. Quando se transformava, tornava-se num
animal feroz com presas capazes de rasgar qualquer pescoço ou arrancar qualquer
membro. Daí a sua fama de assassino.
Começou a escavar junto ao muro com
as suas garras compridas e afiadas. O seu pelo negro não passava de uma sombra
entre as sombras e os seus olhos amarelos pareciam estrelas numa noite de Yx
(ver em notas o significado). Quando
viu que o muro não continuava mais, começou a escavar um túnel. Em poucos
minutos uma passagem tinha sido aberta para o outro lado do muro. A noite já se
tinha imposto e agora apenas as luas serviam de iluminação. Decidiu manter a
forma de pantera negra pois seria mais fácil para se esconder na noite.
Aproximou-se de uma grande janela
que dava para o grande salão onde a festa decorria. Havia convidados de todas
as raças, desde bandaernos com as suas imponentes asas negras e pele morena,
até noriathi com a pele branca e os olhos azuis, passando por vanorianos com
pele escura e longas espadas à cintura e pelos argonianos, poderosos na sua
simplicidade.
Havia convidados a dançar, outros
parados a conversar e um grande grupo no centro do salão. Assumiu que aquele
grupo se reunia em volta do Lorde Garfield. Os músicos tocavam músicas
conhecidos por todos, como “A Espada do Sul” e “Os Cabelos da Donzela”.
Finalmente o pequeno grupo dispersou e Joriah pôde ver o Lorde Garfield. Vestia
um traje simples, uma túnica curta e cinzenta, um casaco vermelho e umas calças
de lã grossa e castanha. Um longo manto vermelho com o símbolo da Casa Garfield
bordado a ouro caía-lhe dos ombros, preso por um broche em forma de peixe a
prendê-lo. O Lorde Garfield era, claramente, um argoniano, com o cabelo
castanho e curto, barba aparada e olhos verdes. Sorria constantemente, de uma
forma jovial, cumprimentando todos os que chegavam.
Quando se apercebeu de que todos os
convidados tinham chegado, pediu aos músicos que parassem. Fez um discurso que
Joriah não conseguiu ouvir e quando acabou, os convidados bateram palmas de
forma ruidosa. Só quando o Lorde Garfield desceu do pequeno estrado onde os
músicos atuavam é que Joriah reparou no seu guarda pessoal que até então o
tinha escoltado a toda a hora.
Então surgiu a oportunidade perfeita
para Joriah. Algum Lorde junto da janela onde estava chamou o Lorde Garfield
que prontamente se aproximou. Joriah recuou e correu de encontro à janela.
Saltou agilmente e partiu-a, entrando para o salão. Atingiu o Lorde Garfield
que caiu ao chão e gritou. Os convidados também começaram a gritar e a fugir. O
guarda pessoal de Garfield desembainhou uma espada longa e afiada e preparou-se
para atacar a pantera, mas Joriah rasgou a garganta do Lorde e fugiu para o
outro lado do salão onde os convidados se empurravam para sair. O guarda
perseguiu-o, mas Joriah virou subitamente e correu para a janela partida em
direção à noite escura. Saltou e conseguiu escapar.
Quando se viu do outro lado da
colina, onde as casas eram pobres e estavam empilhadas umas em cima das outras,
voltou ao seu estado normal. A cidade adormecera com os seus habitantes a
retirarem-se para as suas casas, preparando-se para o dia seguinte.
Caminhou em direção ao porto onde
esperaria por um barco que o levasse para longe de Asriad. O rio corria
alegremente pelo meio da cidade e desaguava no mar agora escuro como o céu. O
porto estava silencioso, ouvindo-se apenas os guinchos de alguns ratos. Então
alguém lhe deu uma pancada na cabeça e Joriah desmaiou.
Acordou numa sala ricamente
decorada. Havia vários retratos nas paredes e tapeçarias com árvores
genealógicas. Uma secretária de madeira escura tinha sido colocada em frente de
duas janelas altas. Joriah estava sentado numa cadeira almofadada e à sua
frente estava um bandaerno. Mas não era um bandaerno qualquer, era Lorde
Ariahad.
— Finalmente, acordaste — disse
quando se apercebeu que Joriah tinha aberto os olhos. — Então, o Garfield está
morto, não é?
— Sim — respondeu Joriah. — Mas como
é que…
— Ótimo — interrompeu o Lorde
Ariahad. — Há muito tempo que o quero debaixo de terra.
— Então as tentativas de assassínio
têm vindo de si?
— Claro. De quem mais? E o Garfield
começava a desconfiar. É que o lugar dele como governador pertence-me. Eu sou
filho do antigo governador de Asriad e Garfield era pupilo do meu pai. A sua
sede por poder começou a tornar-se demasiado grande e Garfield matou o meu pai.
Uma vez que eu era muito novo e ele era pupilo de meu pai, fizeram-no
governador após alguns subornos, apesar de toda a gente saber que tinha sido
ele o assassino. O povo gostava muito do meu pai, sabes? Ele elevou esta cidade
quera um monte de esterco a um monte de esterco com pepitas de ouro. Mas a
Rainha sempre gostou do Garfield, vá-se lá saber porquê e desde então que ela
me tem negado o meu lugar. Agora que tu o mataste, tu serás culpado e quando eu
te entregar, a Rainha vai ter de me dar o lugar.
— Mas tu estavas morto, toda a gente
viu. O templo estava cheio de gente.
— Sim. Mas a minha esposa, que sabia
do plano, disse que queria levar-me para casa para a família se despedir de mim
e afins. Claro que eu não estava realmente morto. A minha esposa esteve na Ilha
durante dois anos e sabe o básico da Dádiva e conseguiu fingir a minha morte.
Quando amanhã aparecer vivo, o meu médico dirá que tinha sido apenas um
problema de coração e que não tinha morrido realmente.
— E quando eles perguntarem como
sabia que eu era o assassino?
— E por que irão eles perguntar? Eu
sou um Lorde, tu um desconhecido. E segundo o que eu vi, tu estavas
transformado, não era? Todos sabem que foi um mondarg que fez o serviço.
Primeiro porque nesta zona não há panteras negras e segundo porque nenhuma
pantera negra selvagem parte uma janela, mata um Lorde que foi vítima de
inúmeras tentativas de assassínio e vai embora.
— Você estava lá quando eu ataquei?
— Claro que estava. Senão, como me
certificaria de que Garfield estava morto?
— Esta cidade é demasiado corrupta…
— murmurou Joriah.
— A cidade não é corrupta. A
política é que é.
— Tanta sede de poder, tanto desejo
de morte, tantos jogos de poder. Porquê tudo isto? Só por causa de um cargo e
de mais algumas moedas? Só por causa da fama e do reconhecimento? Da riqueza?
— A política é um jogo onde só os
melhores sobrevivem. E como qualquer jogo, tens de saber jogá-lo para
sobreviver. Garfield foi inteligente, mas desleixou-se quando se viu rodeado de
poder e dinheiro. Agora vem, vou-te levar à Guarda de Asriad.
Joriah olhou em volta. Um guarda
tinha aberto a porta da sala e o Lorde Ariahad esperava por ele. Então Joriah
levantou-se e correu em direção à janela, transformando-se na pantera feroz que
realmente era. Aterrou silenciosamente na rua em baixo, caindo elegantemente na
rua pavimentada. Lorde Ariahad gritou ordens aos seus guardas para que o
perseguissem, mas Joriah correu rápido, rápido demais para os guardas.
Quando chegou ao porto, havia um
barco que partia. Transformou-se de novo e parou. Olhou para trás, para a
cidade onde os pobres viviam em pequenas casas junto ao mar e onde os ricos
viviam em mansões ao pé da floresta; onde o povo não passava de peças num jogo
complexo e mortífero onde os ricos eram os jogadores; onde as teias da
corrupção tocavam tudo e todos. Joriah olhou para trás e viu a cidade que por
fora era brilhante e perfeita como uma maçã acabada de colher mas que na
realidade é podre como uma maçã murcha e morta. Virou-se para o mar e saltou
para o barco que partia, desaparecendo na noite. As luas brilhavam no céu e
agora só os Deuses sabiam para onde ia.
Notas:
este conto passa-se em Erithios, no início do reinado da Rainha Olyria IV,
quando Joriah tem apenas quinze Ciclos feitos. Em Erithios existem cinco
estações, sendo que Yx, referida no conto acima, é uma época em que há bastante
frio. Na cultura e religião de Erithios, os números três e doze dão sorte,
assim como a cor vermelha, daí a presença destes elementos ao longo do conto.
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